|
Houve
uma época em que as coisas pareceram que
iam acontecer. Isto se apllca a quase
tudo; no caso, o assunto é rock
brasileiro de garagem. O Acidente,
“aquela banda que
ninguém conhece mas todo mundo já ouviu
falar”, foi fundada em 1978 no Rio
por estudantes de Jornalismo e chegou a
se destacar no underground
carioca; porém depois, à medida em que
lançava seus discos independentes, foi
sendo meticulosamente desinventado pela
mídia, junto com muitas outras
bandas na mesma situação, para que meia
dúzia de dez ou vinte apaniguados
pudessem ocupar com exclusividade todo o
espaço disponível e, em conseqüência,
fruir sem concorrentes toda a fama e a
fortuna que aquele breve idílio entre o
público brasileiro e o rock tivesse a
proporcionar.
Existiram
duas bandas
com o mesmo nome Acidente,
diferentes em época e estilo, sem nada em
comum exceto o nome e o produtor /
tecladista. O segundo Acidente, criado em
1989, tinha uma proposta basicamente
instrumental, com influências progressivas,
e seu trabalho está bem
documentado em CD, tal como a fusão que se
seguiu a partir de 2003, com velhos e novos
integrantes mantendo viva a chama através de
lançamentos esporádicos. Entretanto, o
Acidente original, o primeiro e único “Old
Aça”, permanecia restrito a antigos
vinis - até agora, quando se comemoram 30
anos do primeiro LP do grupo, “Guerra
Civil”.
Duas
bandas de garagem (“conjuntos”, como se
dizia na época) deram origem ao Acidente. Na
"Banda Só Por Uma Noite", formada em 1974,
tocavam Guto Rolim, Zeca Pereira e Paulo
Malária, fazendo uma mistura de rock básico,
baladas e temas difíceis de rotular.
Entrementes, Helio “Scubi” Jenné e Raul
Branco fabricavam suas óperas-rock
setentistas (que nunca vieram a público) sob
o nome de Leviathan. Do encontro entre
Scubi, Raul e Mala na Escola de Comunicação
da UFRJ, em 1977, surgiu o efêmero Os
Alegres Compadres de Windsor e, no ano
seguinte, o Acidente enfim estreou num
conturbado festival universitário em recinto
nobre, onde não faltou nenhum ingrediente:
gritos, tumulto, insultos, vômito. Estava
oficialmente inaugurado o Acidente com sua
proposta que se alterou substancialmente ao
longo dos anos, da mesma forma que seus
membros.
Os
tempos que se seguiram foram de intensa
criatividade e o Aça se tornou figurinha
fácil em espeluncas noturnas e albergues
universitários, onde seus shows atraíam uma
pequena multidão de rockeiros ávidos por
algo diferente e autêntico, que elevasse
seus espíritos a viagens alucinantes e os
abstraísse por algumas horas do fato de
viverem numa ditadura miserável do Terceiro
Mundo. O Acidente fazia a cabeça de seus
músicos e de seus fãs.
Tudo estava indo bem e
um disco parecia ser a conseqüência natural;
contudo, como nenhuma gravadora se
interessasse (durante vários anos, o
catálogo de rock nacional se resumiu a três
ou quatro nomes bem manjados), o tecladista
da banda ficou puto, se arvorou em produtor
e o resultado da inexperiência foi o
primeiro LP independente de uma banda de
rock carioca: “Guerra
Civil”, que saiu em junho de 1981. Na
foto, a formação da época: Mala
(teclado, voz), Guto (baixo), Scubi
(guitarra, voz), Zeca (bateria) e o
guitarrista Fernando Sá (o Samuca), que
deixou a banda pouco depois para montar seu
próprio grupo. Porque aí a demanda do
público brasileiro por rock estava se
tornando irrefreável para os parcos
investimentos que os grandes selos até então
faziam no setor, e novas bandas passaram a
espoucar às dúzias todo dia.
Com seu album nas mãos, os membros do
Acidente, investidos da função extra de
divulgadores, descobriram a realidade: as
portas da mídia, impressa e sonora, estavam
fechadas para independentes. Quase cada
segundo ou milímetro tinha preço, e já
estava tudo loteado (nem iríamos pagar...).
“Guerra Civil” enfrentou o completo
desconhecimento e quase foi queimado em
praça pública como protesto, até que um
programa (“Poeira e Country”) de uma rádio
carioca de grande audiência (98 FM) se
encantou pela faixa “O Vaqueiro e a
Debutante” e começou a executá-la
diariamente, inclusive colocando-a várias
vezes no 1° lugar. Isto foi no verão de 1981
para 1982.
Ato contínuo, entrou no ar em fase
experimental a Fluminense FM, “a Maldita”, e
bastou levar o disco na rádio para que
passassem a programar incessantemente várias
faixas. Por volta do carnaval, a Maldita era
a grande novidade entre a juventude rockeira
carioca e o Acidente teve sua chance de
ouro.
Como algo tinha que ter dado muito errado
(ou você não estaria agora lendo o encarte
de um modesto disco independente), naquele
exato instante, enquanto trocentos neófitos
espoucavam, o Aça estava desmobilizado e
assim ficou durante preciosos meses.
Parafraseando um então candidato a
governador, o cavalo passou encilhado uma
única vez e o Acidente não o montou.
Nessa nova pátria do Rock, o Acidente se
reestruturou e retornou aos palcos com
formação modificada, mas encontrando tempos
ainda mais bicudos para independentes. O
pop-rock nacional tinha se tornado um
negócio muito rentável, feudo para poucos
lordes. Quando em meados de 1983 a banda
voltou a entrar em estúdio para gravar o 2°
LP, “Fim
do Mundo” (que ia se chamar “Luta
Armada” e acabou inadvertidamente epônimo de
outro grupo), o lineup já era o básico de
sempre: Mala, Zeca, Guto, Scubi. A
repercussão foi a esperada: uma pedra jogada
num lago... seco.
Agora, até quem fizera fama dando espaço a
indies já tinha entrado na grande dança.
Fazer o quê? Vida que segue. O CD (na época,
compacto duplo) “Piolho”,
de 1985, veio confirmar que o Acidente tinha
sido mesmo uma grande ideia - mas para
outros se darem bem. Mais alguns músicos
passaram pela banda, que num clima de
crescente desânimo ainda se apresentou aqui
e ali, até que em 1987 bateu-se o martelo: o
momento do Acidente – deste Acidente – “had
run its course”. A essa altura, o “rock
brasil” já era um cenário drasticamente
diverso daquele que bem antes motivara
jovens músicos a montarem seus “conjuntos”,
e nem se imaginava que um dia o resgate
daqules registros insolentes despertasse
interesse, como o prova o fato de você estar
com este CD.
|
|